Hoje avental, amanhã luva

 


 

Texto-fonte:

Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria,

São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

Publicada originalmente A Marmota, Rio de Janeiro, março de 1860.

 

Transcrita em Páginas Esquecidas , de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Ed Casa Mandarino, 1939.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comédia em um ato imitada do francês por Machado de Assis

 

 

 

 

PERSONAGENS

 

DURVAL

ROSINHA

BENTO

 

 

 

 

Rio de Janeiro — Carnaval de 1859.

(Sala elegante. Piano, canapé, cadeiras, uma jarra de flores em uma mesa à direita alta. Portas laterais no fundo.)

 

 

 

Cena I

 

ROSINHA (Adormecida no canapé);

 

DURVAL (entrando pela porta do fundo)

 

DURVAL

 

Onde está a Sra. Sofia de Melo?... Não vejo ninguém. Depois de dois anos como venho encontrar estes sítios! Quem sabe se em vez da palavra dos cumprimentos deverei trazer a palavra dos epitáfios! Como tem crescido isto em opulência!... mas... (vendo Rosinha) Oh! Cá está a criadinha. Dorme!... excelente passatempo... Será adepta de Epicuro? Vejamos se a acordo... (dá-lhe um beijo)

 

ROSINHA

 

(acordando)

 

Ah! Que é isto? (levanta-se) O Sr. Durval? Há dois anos que tinha desaparecido... Não o esperava.

 

DURVAL

 

Sim, sou eu, minha menina. Tua ama?

 

ROSINHA

 

Está ainda no quarto. Vou dizer-lhe que V. S. está (vai para entrar) Mas, espere; diga-me uma coisa.

 

DURVAL

 

Duas, minha pequena. Estou à tua disposição. (à parte) Não é má coisinha!

 

ROSINHA

 

Diga-me. V. S. levou dois anos sem aqui pôr os pés: por que diabo volta agora sem mais nem menos?

 

DURVAL

(tirando o sobretudo que deita sobre o canapé)

 

És curiosa. Pois sabe que venho para... para mostrar a Sofia que estou ainda o mesmo.

 

ROSINHA

 

Está mesmo? moralmente, não?

 

DURVAL

 

É boa! Tenho então alguma ruga que indique decadência física?

 

ROSINHA

 

Do físico... não há nada que dizer.

 

DURVAL

 

Pois do moral estou também no mesmo. Cresce com os anos o meu amor; e o amor é como o vinho do Porto: quanto mais velho, melhor. Mas tu! Tens mudado muito, mas como mudam as flores em bo­tão: ficando mais bela.

 

ROSINHA

 

Sempre amável, Sr. Durval.

 

DURVAL

 

Costume da mocidade. (quer dar-lhe um beijo)

 

ROSINHA

(fugindo e com severidade)

 

Sr. Durval!...

 

DURVAL

 

E então! Foges agora! Em outro tempo não eras difícil nas tuas beijocas. Ora vamos! Não tens uma ama­bilidade para este camarada que de tão longe volta!

 

ROSINHA

 

Não quero graças. Agora é outro cantar! Há dois anos eu era uma tola inexperiente... mas hoje!

 

DURVAL

 

Está bem. Mas...

 

ROSINHA

 

Tenciona ficar aqui no Rio?

 

DURVAL

(sentando-se)

 

Como o Corcovado, enraizado como ele. Já me doíam saudades desta boa cidade. A roça, não há coisa pior! Passei lá dois anos bem insípidos — em uma vida uniforme e matemática como um ponteiro de relógio: jogava gamão, colhia café e plantava ba­tatas. Nem teatro lírico, nem rua do Ouvidor, nem Petalógica! Solidão e mais nada. Mas, viva o amor! Um dia concebi o projeto de me safar e aqui estou. Sou agora a borboleta, deixei a crisálida, e aqui me vou em busca de vergéis. (tenta um novo beijo)

 

ROSINHA

(fugindo)

 

Não teme queimar as asas?

 

DURVAL

 

Em que fogo? Ah! Nos olhos de Sofia! Está muda­da também?

 

ROSINHA

 

Sou suspeita. Com seus próprios olhos o verá.

 

DURVAL

 

Era elegante e bela há bons dois anos. Sê-lo-á ainda? Não será? Dilema de Hamlet. E como gosta­va de flores! Lembras-te? Aceitava-mas sempre não sei se por mim, se pelas flores; mas é de crer que fosse por mim.

 

ROSINHA

 

Ela gostava tanto de flores!

 

DURVAL

 

Obrigado. Dize-me cá. Por que diabo sendo uma criada, tiveste sempre tanto espírito e mesmo...

 

ROSINHA

 

Não sabe? Eu lhe digo. Em Lisboa, donde viemos para aqui, fomos condiscípulas: estudamos no mes­mo colégio, e comemos à mesma mesa. Mas, coisas do mundo!... Ela tornou-se ama e eu criada! É verda­de que me trata com distinção, e conversamos às vezes em altas coisas.

 

DURVAL

 

Ah! é isso? Foram condiscípulas. (levanta-se) E conversam agora em altas coisas!... Pois eis-me aqui para conversar também; faremos um trio admirável.

 

ROSINHA

 

Vou participar-lhe a sua chegada.

 

DURVAL

 

Sim, vai, vai. Mas olha cá, uma palavra.

 

ROSINHA

 

Uma só, entende?

 

DURVAL

 

Dás-me um beijo?

 

ROSINHA

 

Bem vê que são três palavras. (entra à direita)

 

 

Cena II

 

DURVAL e BENTO

 

DURVAL

 

Bravo! A pequena não é tola... tem mesmo muito espírito! Eu gosto dela, gosto! Mas é preciso dar-me ao respeito. (vai ao fundo e chama) Bento! (descendo) Ora depois de dois anos como virei en­contrar isto? Sofia terá por mim a mesma queda? É isso o que vou sondar. É provável que nada perdes­se dos antigos sentimentos. Oh! decerto! Vou começar por levá-la ao baile mascarado; há de aceitar, não pode deixar de aceitar! Então, Bento! mariola?

 

BENTO

 (entrando com um jornal) Pronto.

 

DURVAL

 

Ainda agora! Tens um péssimo defeito para bo­leeiro, é não ouvir.

 

BENTO

 

Eu estava embebido com a interessante leitura do Jornal do Comércio: ei-lo. Muito mudadas estão estas coisas por aqui! Não faz uma idéia! E a política? Esperam-se coisas terríveis do parlamento.

 

DURVAL

 

Não me maçes, mariola! Vai abaixo ao carro e traz uma caixa de papelão que lá está... Anda!

 

BENTO

 

Sim, senhor; mas admira-me que V. S. não preste atenção ao estado das coisas.

 

DURVAL

 

Mas que tens tu com isso, tratante?

 

BENTO

 

Eu nada; mas creio que...

 

DURVAL

 

Salta lá para o carro, e traz a caixa depressa!

 

 

Cena III

 

DURVAL e ROSINHA

 

DURVAL

 

Pedaço d'asno! Sempre a ler jornais; sempre a ta­garelar sobre aquilo que menos lhe deve importar! (vendo Rosinha) Ah!... és tu? Então ela... (levanta-se)

 

ROSINHA

 

Está na outra sala à sua espera.

 

DURVAL

 

Bem, aí vou. (vai entrar e volta) Ah! recebe a caixa de papelão que trouxer meu boleeiro.

 

ROSINHA

 

Sim, senhor.

 

DURVAL

 

Com cuidado, meu colibri!

 

ROSINHA

 

Galante nome! Não será em seu coração que farei o meu ninho.

 

DURVAL

(à parte)

 

Ah! É bem engraçada a rapariga! (vai-se)

 

 

Cena IV

 

ROSINHA, DEPOIS BENTO

 

ROSINHA

 

Muito bem, Sr. Durval. Então voltou ainda? É a hora de minha vingança. Há dois anos, tola como eu era, quiseste seduzir-me, perder-me, como a muitas outras! E como? mandando-me dinheiro... dinheiro! — Media as infâmias pela posição. Assentava de... Oh! mas deixa estar! vais pagar tudo... Gosto de ver essa gente que não enxerga sentimento nas pessoas de condição baixa... como se quem traz um avental, não pode também calçar uma luva!

 

BENTO

(traz uma caixa de papelão)

 

Aqui está a caixa em questão... (põe a caixa so­bre uma cadeira) Ora, viva! Esta

caixa é de meu amo.

 

ROSINHA

 

Deixe-a ficar.

 

BENTO

(tirando o jornal do bolso)

 

Fica entregue, não? Ora bem! Vou continuar a minha interessante leitura... Estou na gazetilha — Estou pasmado de ver como vão as coisas por aqui! — Vão a pior. Esta folha põe-me ao fato de grandes novidades.

 

ROSINHA

(sentando-se de costas para ele)

 

Muito velhas para mim.

 

BENTO

(com desdém)

 

Muito velhas? Concedo. Cá para mim têm toda a frescura da véspera. 

 

ROSINHA

(consigo)

 

Quererá ficar?

 

BENTO

(sentando-se do outro lado)

 

Ainda uma vista d'olhos! (abre o jornal)

 

ROSINHA

E então não se assentou?

 

BENTO

(lendo)

 

Ainda um caso: "Ontem à noite desapareceu uma nédia e numerosa criação de aves domésticas. Não se pôde descobrir os ladrões, porque, desgraçadamente havia uma patrulha a dois passos dali."

 

ROSINHA

(levantando-se)

 

Ora, que aborrecimento!

 

BENTO

(continuando)

 

“Não é o primeiro caso que dá nesta casa da rua dos Inválidos." (consigo) Como vai isto, meu Deus!  

 

ROSINHA

(Abrindo a caixa)

 

Que belo dominó!

 

BENTO

(indo a ela)

 

Não mexa! Creio que é para ir ao baile mascarado hoje...

 

ROSINHA

 

Ah!... (silêncio) Um baile... hei de ir também!

 

BENTO

 

Aonde? Ao baile? Ora esta!

 

ROSINHA

 

E por que não?

 

BENTO

 

Pode ser; contudo, quer vás, quer não vás, deixa-me ir acabar a minha leitura naquela sala de espera.

 

ROSINHA

 

Não... tenho uma coisa a tratar contigo.

 

BENTO

(lisonjeado)

 

Comigo, minha bela!

 

ROSINHA

 

Queres servir-me em uma coisa? 

 

BENTO

(severo)

 

Eu cá só sirvo ao Sr. Durval, e é na boléia!

 

ROSINHA

 

Pois hás de me servir. Não és então um rapaz como os outros boleeiros, amável e serviçal...

 

BENTO

 

Vá feito... não deixo de ser amável; é mesmo o meu capítulo de predileção.

 

ROSINHA

 

Pois escuta. Vais fazer um papel, um bonito papel.

 

BENTO

 

Não entendo desse fabrico. Se quiser algumas lições sobre a maneira de dar uma volta, sobre o governo das rédeas em um trote largo, ou coisa cá do meu ofício, pronto me encontra.

 

ROSINHA

(que tem ido buscar o ramalhete no jarro)

 

Olha cá: sabes o que é isso?

 

BENTO

 

São flores.

 

ROSINHA

 

É o ramalhete diário de um fidalgo espanhol que viaja incógnito.

 

BENTO

 

Ah! (toma o ramalhete)

 

ROSINHA

(indo a uma gaveta buscar um papel)

 

O Sr. Durval conhece a tua letra?

 

BENTO

 

Conhece apenas uma. Eu tenho diversos modos de escrever.

 

ROSINHA

 

Pois bem; copia isto. (dá-lhe o papel) Com letra que ele não conheça.

 

BENTO

 

Mas o que é isto?

 

ROSINHA

 

Ora, que te importa? És uma simples máquina. Sabes tu o que vai fazer quando o teu amo te indica uma direção ao carro? Estamos aqui no mesmo caso.

 

BENTO

 

Fala como um livro! Aqui vai. (escreve)

 

ROSINHA

 

Que amontoado de garatujas!...

 

BENTO

 

Cheira a diplomata. Devo assinar?

 

ROSINHA

 

Que se não entenda.

 

BENTO

 

Como um perfeito fidalgo. (escreve)

 

ROSINHA

 

Subscritada para mim. À Sra. Rosinha. (Bento escreve) Põe agora este bilhete nesse e leva. Voltarás a propósito. Tens também muitas vozes?

 

BENTO

 

Vario de fala, como de letra.

 

ROSINHA

 

Imitarás o sotaque espanhol?

 

BENTO

 

Como quem bebe um copo d’água!

 

ROSINHA

 

Silêncio! Ali está o Sr. Durval.

 

 

Cena V

 

ROSINHA, BENTO, DURVAL

 

DURVAL

 

(a Bento)

 

Trouxeste a caixa, palerma?

 

BENTO

(escondendo atrás das costas o ramalhete)

 

Sim, senhor.

 

DURVAL

 

Traz a carruagem para o portão

 

BENTO

 

Sim senhor. (Durval vai vestir o sobretudo, mirando-se ao espelho) O jornal? Onde pus eu o jornal? (sentindo-o no bolso) Ah!...

 

ROSINHA

(baixo a Bento)

 

Não passes na sala de espera. (Bento sai)

 

 

Cena VI

 

DURVAL, ROSINHA

 

DURVAL

 

Adeus, Rosinha, é preciso que eu me retire.

 

ROSINHA

(à parte)

 

Pois não!

 

DURVAL

 

Dá essa caixa a tua ama.

 

ROSINHA

 

Vai sempre ao baile com ela?

 

DURVAL

 

Ao baile? Então abriste caixa?

 

ROSINHA

 

Não vale a pena falar nisso. Já sei, já sei que foi recebido de braços abertos.

 

DURVAL

 

Exatamente. Era a ovelha que voltava ao aprisco depois de dois anos de apartamento.

 

ROSINHA

 

Já vê que andar longe não é mau. A volta é sempre um triunfo. Use, abuse mesmo da receita. Mas então sempre vai ao baile?

 

DURVAL

 

Nada sei de positivo. As mulheres são como os logogrifos. O espírito se perde no meio daquelas combinações...

 

ROSINHA

 

Fastidiosas, seja franco.

 

DURVAL

 

É um aleive: não é esse o meu pensamento. Contudo devo, parece-me dever crer, que ela irá. Como me alegra, e me entusiasma esta preferência que me dá a bela Sofia!

 

ROSINHA

 

Preferência? Há engano: preferir supõe escolha, supõe concorrência...

 

DURVAL

 

E então?

 

ROSINHA

 

E então, se ela vai ao baile é unicamente pelos seus bonitos olhos, se não fora V. S., ela não ia.

 

DURVAL

 

Como é isso?

 

ROSINHA

(indo ao espelho)

 

Mire-se neste espelho.

 

DURVAL

 

Aqui me tens

 

ROSINHA

 

O que vê nele?

 

DURVAL

 

Boa pergunta! Vejo-me a mim próprio.

 

ROSINHA

 

Pois bem. Está vendo toda a corte da Sra. Sofia, todos os seus adoradores.

 

DURVAL

 

Todos! Não é possível. Há dois anos a bela senhora era a flor bafejada por uma legião de zéfiros... Não é possível.

 

ROSINHA

 

Parece-me criança! Algum dia os zéfiros foram estacionários? Os zéfiros passam e mais nada. É. o símbolo do amor moderno.

 

DURVAL

 

E a flor fica no hastil. Mas as flores duram uma manhã apenas. (severo) Quererás tu dizer que Sofia passou a manhã das flores?

 

ROSINHA

 

Ora, isso é loucura. Eu disse isto?

 

DURVAL

(pondo a bengala junto ao piano)

 

Parece-me entretanto...

 

ROSINHA

 

V. S. tem uma natureza de sensitiva; por outra, toma os recados na escada. Acredite ou não, o que lhe digo é a pura verdade. Não vá pensar que o afirmo assim para conservá-lo junto de mim: estimara mais o contrário.

 

DURVAL

(sentando-se)

 

Talvez queiras fazer crer que Sofia é alguma fruta passada, ou jóia esquecida no fundo da gaveta por não estar em moda. Estais enganada. Acabo de vê-la; acho-lhe ainda o mesmo rosto: vinte e oito anos, apenas.

 

ROSINHA

 

Acredito.

 

DURVAL

 

É ainda a mesma: deliciosa.

 

ROSINHA

 

Não sei se ela lhe esconde algum segredo.

 

DURVAL

 

Nenhum.

 

ROSINHA

 

Pois esconde. Ainda lhe não mostrou a certidão de batismo. (vai sentar-se ao lado oposto)

 

DURVAL

 

Rosinha! E depois, que me importa? Ela é ainda aquele querubim do passado. Tem uma cintura... que cintura!

 

ROSINHA

 

É verdade. Os meus dedos que o digam!

 

DURVAL

 

Hein? E o corado daquelas faces, o alvo daquele colo, o preto daquelas sobrancelhas?

 

ROSINHA

(levantando-se)

 

Ilusão! Tudo isso é tabuleta do Desmarais; aquela cabeça passa pelas minhas mãos. É uma beleza de pó de arroz: mais nada.

 

DURVAL

(levantando-se bruscamente)

 

Oh! Essa agora!

 

ROSINHA

(à parte)

 

A pobre senhora está morta!

 

DURVAL

 

Mas, que diabo! Não é um caso de me lastimar; não tenho razão disso. O tempo corre para todos, e portanto a mesma onda nos levou a ambos folhagens da mocidade. E depois eu amo aquela engraçada mulher!

 

ROSINHA

 

Reciprocidade; ela também o ama.

 

DURVAL

(com um grande prazer)

 

Ah!

 

ROSINHA

 

Duas vezes chegou à estação do campo para tomar o wagon, mas duas vezes voltou para casa. Temia algum desastre da maldita estrada de ferro!

 

DURVAL

 

Que amor! Só recuou diante da estrada de ferro!

 

ROSINHA

 

Eu tenho um livro de notas, donde talvez lhe possa tirar provas do amor da Sra. Sofia. É uma lista cronológica e alfabética dos colibris que por aqui têm esvoaçado.

 

DURVAL

 

Abre lá isso então!

 

ROSINHA

(folheando um livro)

 

Vou procurar.

 

DURVAL

 

Tem aí todas as letras?

 

ROSINHA

 

Todas. É pouco agradável para V. S.; mas tem todas desde A até o Z.

 

DURVAL

 

Desejara saber quem foi a letra K.

 

ROSINHA

 

É fácil; algum alemão.

 

DURVAL

 

Ah! Ela também cultiva os alemães?

 

ROSINHA

 

Durval é a letra D. — Ah! Ei-lo: (lendo) “Durval, quarenta e oito anos de idade...”

 

DURVAL

 

Engano! Não tenho mais de quarenta e seis.

 

ROSINHA

 

Mas esta nota foi escrita há dois anos.

 

DURVAL

 

Razão demais. Se tenho hoje quarenta e seis, há dois tinha quarenta e quatro... e claro!

 

ROSINHA

 

Nada. Há dois anos devia ter cinqüenta.

 

DURVAL

 

Esta mulher é um logogrifo!

 

ROSINHA

 

V. S. chegou a um período em sua vida em que a mocidade começa a voltar; em cada ano, são doze meses de verdura que voltam como andorinhas na primavera.

 

DURVAL

 

Já me cheirava a epigrama. Mas vamos adiante com isso.

 

ROSINHA

(fechando o livro)

 

Bom! Já sei onde estão as provas. (vai a uma gaveta e tira dela uma carta) Ouça: — "Querida Amélia...

 

DURVAL

 

Que é isso?

 

ROSINHA

 

Uma carta da ama a uma sua amiga. "Querida Amélia: o Sr. Durval é um homem interessante, rico, amável, manso como um cordeiro, e submisso como o meu Cupido..." (a Durval) Cupido é um cão d'água que ela tem.

 

DURVAL

 

A comparação é grotesca na forma, mas exata no fundo. Continua, rapariga.

 

ROSINHA

(lendo)

 

“Acho-lhe contudo alguns defeitos...

 

DURVAL

 

Defeitos?

 

ROSINHA

 

“Certas maneiras, certos ridículos, pouco espírito, muito falatório, mas afinal um marido com todas as virtudes necessárias...

 

DURVAL

 

É demais

 

ROSINHA

 

“Quando eu conseguir isso, peço-te que venhas vê-lo como um urso na chácara do Souto.

 

DURVAL

 

Um urso!

 

ROSINHA

(lendo)

 

"Esquecia-me de dizer-te que o Sr. Durval usa de cabeleira." (fecha a carta)

 

DURVAL

 

Cabeleira! É uma calúnia! Uma calúnia atroz! (levando a mão ao meio da cabeça, que está calva) Se eu usasse de cabeleira...

 

ROSINHA

 

Tinha cabelos, é claro.

 

DURVAL

(passeando com agitação)

 

Cabeleira! E depois fazer-me seu urso como um marido na chácara do Souto.

 

ROSINHA

(às gargalhadas)

 

Ah! ah! ah! (vai-se pelo fundo)

 

 

Cena VII

 

DURVAL

(passeando)

 

É demais! E então quem fala! uma mulher que tem umas faces... Oh! é o cúmulo da impudência! É aquela mulher furta-cor, aquele arco-íris que tem a liberdade de zombar de mim!... (procurando) Rosinha! Ah! foi-se embora... (sentando-se) Oh! Se eu me tivesse conservado na roça, ao menos lá não teria dessas apoquentações!...Aqui na cidade, o prazer é misturado com zangas de acabrunhar o espírito mais superior! Nada! (levanta-se) Decididamente volto para lá... Entretanto, cheguei há pouco... Não sei se deva ir; seria dar cavaco com aquela mulher; e eu... Que fazer? Não sei, deveras!

 

 

Cena VIII

 

DURVAL e BENTO (de paletó, chapéu de palha, sem botas)

 

BENTO

(mudando a voz)

 

Para a Sra. Rosinha. (põe o ramalhete sobre a mesa)

 

DURVAL

 

Está entregue.

 

BENTO

(à parte)

 

Não me conhece! Ainda bem.

 

DURVAL

 

Está entregue.

 

BENTO

 

Sim, senhor! (sai pelo fundo)

 

 

Cena IX

 

DURVAL

(só, indo buscar o ramalhete)

 

Ah!ah!flores! A Sra. Rosinha tem quem lhe mande flores! Algum boleeiro estúpido. Estas mulhe­res são de um gosto esquisito às vezes! — Mas como isto cheira! Dir-se-ia um presente de fidalgo! (vendo a cartinha) Oh! que é isto? Um bilhete de amores! E como cheira! Não conheço esta letra; o talho é rasga­do e firme, como de quem desdenha. (levando a cartinha ao nariz) Essência de violeta, creio eu. É uma planta obscura, que também tem os seus satélites. Todos os têm. Esta cartinha é um belo assunto para uma dissertação filosófica e social. Com efeito: quem diria que esta moça, colocada tão baixo, teria bilhetes perfumados!... (leva ao nariz) Decidida­mente é essência de magnólias!

 

 

Cena X

 

ROSINHA (no fundo) DURVAL (no proscênio)

 

ROSINHA

(consigo)

 

Muito bem! Lá foi ela visitar a sua amiga no Botafogo. Estou completamente livre. (desce)

 

DURVAL

(escondendo a carta)

 

Ah! és tu? Quem te manda destes presentes?

 

ROSINHA

 

Mais um. Dê-me a carta.

 

DURVAL

 

A carta? É boa! é coisa que não vi.

 

ROSINHA

 

Ora não brinque! Devia trazer uma carta. Não vê que um ramalhete de flores é um estafeta mais segu­ro do que o correio da corte!

 

DURVAL

(dando-lhe a carta)

 

Aqui a tens; não é possível mentir.

 

ROSINHA

 

Então! (lê o bilhete)

 

DURVAL

 

Quem é o feliz mortal?

 

ROSINHA

 

Curioso!  

 

DURVAL

 

É moço ainda?

 

ROSINHA

 

Diga-me: é muito longe daqui a sua roça?

 

DURVAL

 

É rico, é bonito?

 

ROSINHA

 

Dista muito da última estação?

 

DURVAL

 

Não me ouves, Rosinha?

 

ROSINHA

 

Se o ouço! É curioso, e vou satisfazer-lhe a curio­sidade. É rico, é moço e é bonito. Está satisfeito?

 

DURVAL

 

Deveras! E chama-se?...

 

ROSINHA

 

Chama-se... Ora eu não me estou confessando!

 

DURVAL

 

És encantadora!

 

ROSINHA

 

Isso é velho. E o que me dizem os homens e os espelhos. Nem uns nem outros mentem.

 

DURVAL

 

Sempre graciosa!

 

ROSINHA

 

Se eu o acreditar, arrisca-se a perder a liberda­de... tomando uma capa...

 

DURVAL

 

De marido, queres dizer (à parte) ou de um urso! (alto) Não tenho medo disso. Bem vês a alta posição... e depois eu prefiro apreciar-te as qualidades de fora. Talvez leve a minha amabilidade a fazer-te um madrigal.

 

ROSINHA

 

Ora essa!

 

DURVAL

 

Mas, fora com tanto tagarelar!  Olha cá! Eu estou disposto a perdoar aquela carta; Sofia vem sempre ao baile?

 

ROSINHA

 

Tanto como o imperador dos turcos... Recusa.

 

DURVAL

 

Recusa!  É o cúmulo da... E por que recusa?

 

ROSINHA

 

Eu sei lá! Talvez um nervoso; não sei!

 

DURVAL

 

Recusa! Não faz mal... Não quer vir, tanto melhor! Tudo está acabado, Sra. Sofia de Melo! Nem uma atenção ao menos comigo, que vim da roça por sua causa unicamente! Recebe-me com agrado, e depois faz-me destas!

 

ROSINHA

 

Boa noite, Sr. Durval.

 

DURVAL

 

Não te vás assim; conversemos ainda um pedaço.

 

ROSINHA

 

Às onze horas e meia... interessante conversa!

 

DURVAL

(sentando-se)

 

Ora que tem isso? Não são horas que fazem a conversa interessante, mas os interlocutores.

 

ROSINHA

 

Ora tenha a bondade de não dirigir cumprimentos.

 

DURVAL

 

Mal sabes que tens as mãos, como as de uma patrícia romana; parecem calçadas de luva, se é que uma luva pode ter estas veias azuis como rajadas de mármore.

 

ROSINHA

(à parte)

 

Ah! Hein!

 

DURVAL

 

E esses olhos de Helena!

 

ROSINHA

 

Ora!

 

DURVAL

 

E estes bravos de Cleópatra!

 

ROSINHA

(à parte)

 

Bonito!

 

DURVAL

 

Apre! Queres que esgote a história?

 

ROSINHA

 

Oh! não!

 

DURVAL

 

Então por que se recolhe tão cedo a estrela d'alva?

 

ROSINHA

 

Não tenho outra coisa a fazer diante do sol.

 

DURVAL

 

Ainda um cumprimento! (vai à caixa de papelão) Olha cá. Sabes o que há aqui? um dominó.

 

ROSINHA

(aproximando-se)

 

Cor-de-rosa! Ora vista, há de ficar-lhe bem.

 

DURVAL

 

Dizia um célebre grego: dê-me pancadas, mas ouça-me! — Parodio aquele dito: — Ri, graceja, como quiseres, mas hás de escutar-me: (desdobrando o do­minó) não achas bonito?

 

ROSINHA

(aproximando-se)

 

Oh! decerto!

 

DURVAL

 

Parece que foi feito para ti!... É da mesma altura. E como te há de ficar! Ora, experimenta!

 

ROSINHA

 

Obrigado.

 

DURVAL

 

Ora vamos! experimenta; não custa.

 

ROSINHA

 

Vá feito se é só para experimentar.

 

DURVAL

(vestindo-lhe o dominó)

 

Primeira manga.

 

ROSINHA

 

E segunda! (veste-o de todo)

 

DURVAL

 

Delicioso. Mira-te naquele espelho. (Rosinha obedece) Então!

 

ROSINHA

(passeando)

 

Fica-me bem?

 

DURVAL

(seguindo-a)

 

A matar! a matar! (à parte) A minha vingança começa, Sra. Sofia de melo! (a Rosinha) Estás esplêndida! Deixa dar-te um beijo?

 

ROSINHA

 

Tenha mão.

 

DURVAL

 

Isso agora é que não tem grata!

 

ROSINHA

 

Em que oceano de fitas e de sedas estou mergulhada! (dá meia-noite) Meia-noite!

 

DURVAL

 

Meia-noite!

 

ROSINHA

 

Vou tirar o dominó... é pena!

 

DURVAL

 

Qual tirá-lo! Fica com ele. (pega no chapéu e nas luvas)

 

ROSINHA

 

Não é possível.

 

DURVAL

 

Vamos ao baile mascarado.

 

ROSINHA

 

(à parte)

 

Enfim. (alto) Infelizmente não posso.

 

DURVAL

 

Não pode? e então por quê?

 

ROSINHA

 

É segredo.

 

DURVAL

 

Recusas? Não sabes o que é um baile. Vais ficar extasiada. E um mundo fantástico, ébrio, movediço, que corre, que salta, que ri, em um turbilhão de harmonias extravagantes!

 

ROSINHA

 

Não posso ir. (batem à porta) [à parte] É Bento.

 

DURVAL

 

Quem será?

 

ROSINHA

 

Não sei. (indo ao fundo) Quem bate?

 

BENTO

(fora com a voz contrafeita)

 

O hidalgo Don Alonso da Sylveira y Zorrilla y Guclines y Guatinara y Marouflas de la Vega !

 

DURVAL

(Assustado

 

É um batalhão que temos à porta! A Espanha muda-se para cá?  

 

ROSINHA

 

Caluda! Não sabe quem está ali? É um fidalgo da primeira nobreza de Espanha. Fala à rainha de chapéu na cabeça.

 

DURVAL

 

E que quer ele?

 

ROSINHA

 

A resposta daquele ramalhete.

 

DURVAL

(dando um pulo)

 

Ah! Foi ele...

 

ROSINHA

 

Silêncio!

 

BENTO

(fora

 

É meia-noite. O baile vai começar.

 

ROSINHA

 

Espere um momento.

 

DURVAL

 

Que espere! Mando-o embora. (à parte) É um fidalgo!

 

ROSINHA

 

Mandá-lo embora? Pelo contrário; vou mudar de dominó e partir com ele.

 

DURVAL

 

Não, não; não faças isso!

 

BENTO

(fora)

 

É meio-noite e cinco minutos. Abre a porta a quem deve ser teu marido.

 

DURVAL

 

Teu marido!

 

ROSINHA

 

E então!

 

BENTO

 

Abre! abre!

 

DURVAL

 

É demais! Estás com o meu dominó... hás de ir comigo ao baile!

 

ROSINHA

 

Não é possível; não se trata a um fidalgo espanhol como a um cão. Devo ir com ele.

 

DURVAL

 

Não quero que vás.

 

ROSINHA

 

Hei de ir.(dispõe-se a tirar o dominó) Tome lá...

 

DURVAL

(impedindo-a)

 

Rosinha, ele é um espanhol, e além de espanhol, fidalgo. Repara que é uma dupla cruz com que tens de carregar.

 

ROSINHA

 

Qual cruz! E não se casa ele comigo?

 

DURVAL

 

Não caias nessa!

 

BENTO

(fora)

 

Meia-noite e dez minutos! então vem ou não vem?

 

ROSINHA

 

Lá vou. (a Durval) Vê como se impacienta! Tudo aquilo é amor!

 

DURVAL

(com explosão)

 

Amor! E se eu te desse em troca daquele amor castelhano, um amor brasileiro ardente e apaixona­do? Sim, eu te amo, Rosinha; deixa esse espanhol tresloucado!

 

ROSINHA

 

Sr. Durval!

 

DURVAL

 

Então, decide!

 

ROSINHA

 

Não grite! Aquilo é mais forte do que um tigre de Bengala.

 

DURVAL

 

Deixa-o; eu matei as onças do Maranhão e já estou acostumado com esses animais. Então? Vamos! Eis-me a teus pés, ofereço-te a minha mão e a minha fortuna!

 

ROSINHA

(à parte)

 

Ah... (alto) Mas o fidalgo?

 

BENTO

(fora)

 

É meia-noite e doze minutos!

 

DURVAL

 

Manda-o embora, ou senão, espera. (levanta-se) Vou matá-lo; é o meio mais pronto.

 

ROSINHA

 

Não, não; evitemos a morte. Para não ver correr sangue, aceito a sua proposta.

 

DURVAL

(com regozijo)

 

Venci o castelhano! É um magnífico triunfo! Vem, minha bela; o baile nos espera!

 

ROSINHA

 

Vamos. Mas repare na enormidade do sacrifício.

 

DURVAL

 

Serás compensada, Rosinha. Que linda peça de entrada! parte) São dois os enganados — o fidalgo e Sofia (alto) Ah! ah! ah!

 

ROSINHA

(rindo também)

 

Ah! Ah! Ah! (à parte) Eis-me vingada!

 

DURVAL

 

Silêncio! (vão pé ante pela porta da esquerda. Sai Rosinha primeiro, e Durval, da soleira da porta para a porta do fundo, a rir às gargalhadas)

 

 

Cena última

 

BENTO

(abrindo a porta do fundo)

 

Ninguém mais! Desempenhei a meu papel: estou contente! Aquela subiu um degrau na sociedade. Deverei ficar assim? Alguma baronesa não me desdenharia decerto. Virei mais tarde. Por enquanto, vou abrir a portinhola. (vai a sair e cai o pano)

 

 

 

FIM